quarta-feira, 24 de agosto de 2011

URGÊNCIA DE UM ÉTHOS MUNDIAL: O ÉTHOS MUNDIAL DE QUE PRECISAMOS.




"""UM HOMEM DE MORAL NÃO FICA NO CHÃO, LEVANTA, SACODE A POEIRA E DÁ A VOLTA POR CIMA"""






Urgência de um éthos mundial: o éthos mundial de que precisamos
Boff, 2000

Aduzir: apresentar;
Robotização: emprego de robôs na produço industrial;
Status: (palavra latina), posição social: lugar ocupado por um sujeito na sociedade: prestígio.
Civilizatório: determinante de civilizaço;
Plasmadora: modeladora;
Demiurgo: segundo Platão, é o artesão divino ou o princípio organizador do universo.
Axial: essencial, fundamental;
Alteridade: natureza ou condição do que é distinto;
Biótica: que é própria da vida, das funções e das qualidades dos seres vivos.
Domininium mundi: domínio do mundo;
Tecnociência: conhecimentos específicos tratados com organização específica e com profundidade quanto aos procedimentos, instrumentos e objetos do saber;
Homo sapiens: nome científico da espécie humana, como a conhecemos hoje;
Sinergética: que coopera, cooperativa;
Sustentabilidade: possibilidade de amparo, apoio, proteção, fortificação;
Estados-nações: divisão política, administrativa e territorial entre países.
Phátos: sentimento de compaixão ou empatia criados no texto;
Promanar: brotar, provir, dimanar;
Generacionista: relativo a generacionismo, espiritualista.

Três problemas suscitam a urgência de uma ética mundial:
a crise social, a crise do sistema de trabalho e a crise
ecológica, todas de dimensões planetárias.

Problemas globais, soluções globais

Em primeiro lugar, a crise social. Os indicadores são notórios e não
precisamos aduzilos. A mudança da natureza da operação tecnológica,
mediante a robotização e a informatização, propiciou uma produção
fantástica de riqueza. Ela vem apropriada, de forma altamente desigual,
por grandes corporações transnacionais e mundiais que aprofundam ainda
mais o fosso existente entre ricos e pobres. Essa acumulação é
injusta, porque pessimamente distribuída. Os níveis de solidariedade
entre os humanos decaíram aos tempos da barbárie mais cruel.

Tal fato suscita um fantasma aterrador: uma bifurcação possível dentro
da espécie humana. Por um lado, estrutura-se um tipo de humanidade
opulenta, situada nos países centrais, que controla os processos
técnico-científicos, econômicos e políticos e é o oásis dos países
periféricos onde vivem as classes aquinhoadas. Todos esses se
beneficiam dos avanços tecno-científicos, da biogenética e da manipulação
dos recursos naturais e vivem em seus refúgios por cerca de 120/130 anos,
tempo biológico de nossas células. Por outro, a velha humanidade, vivendo
sob a pressão de manter um status de consumo razoável ou simplesmente na
pobreza, na marginalização e na exclusão. Estes, os deserdados e destituídos,
vivem como sempre viveu a humanidade e alcançam no máximo a média de
60-70 anos de expectativa de vida.

Em segundo lugar, a crise do sistema de trabalho: as novas formas de
produção cada vez mais automatizadas dispensam o trabalho humano; em
seu lugar, entra a máquina inteligente. Com isso, destroem-se postos de
trabalho e tornam-se os trabalhadores descartáveis, criando um imenso
exército de excluídos em todas as sociedades mundiais.

Tal mudança na própria natureza do processo tecnológico demanda um
novo padrão civilizatório. Haverá desenvolvimento sem trabalho.
A grande questão não será o trabalho — este, no futuro, poderá ser
o luxo de alguns —, mas o ócio. Como passar de uma sociedade de pleno
emprego para uma sociedade de plena atividade que garanta a subsistência
individual? Como fazer com que o ócio seja criativo, realizador das
virtualidades humanas? Libertado do regime assalariado a que
foi submetido pela sociedade produtivista moderna, especialmente
capitalista, o trabalho voltará à sua natureza original: a atividade
criadora do ser humano, a ação plasmadora do real, o demiurgo que
transporá os sonhos e as virtualidades presentes nos seres humanos em
práticas surpreendentes e em obras expressivas do que seja e do que pode
ser a criatividade humana. Estamos preparados para esse
salto de qualidade rumo à plena expressão humana?

Em terceiro lugar, emerge a crise ecológica. Os cenários também são
de amplo conhecimento, divulgados não apenas por reconhecidos
institutos de pesquisa que se preocupam com o estado global da Terra,
mas também pela própria Cruz Vermelha Internacional e por vários
organismos da ONU. Nas últimas décadas, temos construído o princípio da
autodestruição.
A atividade humana irresponsável em face da máquina de morte que criou
pode produzir danos irreparáveis à biosfera e destruir as condições de vida dos
seres humanos na Terra. Numa palavra, vivemos sob uma grave ameaça de
desequilíbrio ecológico, que poderá afetar a Terra como sistema integrador
de sistemas. Ela é como um coração. Todos os demais organismos vitais serão
lesados: os climas, as águas potáveis, a química dos solos, os microorganismos
e as sociedades humanas.
A sustentabilidade do planeta, urdida em bilhões de anos de trabalho
cósmico, poderá desfazer-se. A Terra buscará um novo equilíbrio que,
seguramente, acarretará uma devastação fantástica de vidas. Tal princípio
de autodestruição convoca urgentemente outro: o princípio de
co-responsabilidade por nossa existência como espécie e como
planeta. Se queremos continuar a aventura terrenal e cósmica, temos de
tomar decisões coletivas que se ordenam à salvaguarda do criado e à
manutenção das condições gerais que permitam a evolução seguir seu curso
ainda aberto.

A revolução possível em tempos de globalização

A causa principal da crise social se prende à forma como as
sociedades modernas se organizaram no acesso, na produção e na distribuição
dos bens da natureza e da cultura. Essa forma é profundamente desigual,
porque privilegia as minorias que detêm o ter, o poder e o saber, sobre
as grandes maiorias que vivem do trabalho. Em nome de tais títulos se
apropriam de maneira privada dos bens produzidos pelo empenho de todos.
Os laços de solidariedade e de cooperação não são axiais, mas o
são o desempenho individual e a competitividade, criadores permanentes de
apartação social com milhões e milhões de marginalizados, de excluídos
e de vítimas.
A raiz do alarme ecológico reside no tipo de relação que os humanos,
nos últimos séculos, entretiveram com a Terra e seus recursos: uma relação
de domínio, de não reconhecimento de sua alteridade e de falta de cuidado
necessário e do respeito imprescindível que toda alteridade exige.
O projeto da tecnociência, com as características que possui hoje,
só foi possível porque, subjacente, havia a vontade de poder e de estar
sobre a natureza e não junto dela, porque se destruiu a consciência de uma
grande comunidade biótica, terrenal e cósmica, na qual se encontra inserido
o ser humano, juntamente com os demais seres.
Essa constatação não representa uma atitude obscurantista em face
do saber científicotécnico, mas uma crítica ao tipo de saber científico-técnico
e à forma como ele foi apropriado dentro de um projeto de dominium mundi.
Este implica a destruição da aliança de convivência harmônica entre
os seres humanos e a natureza, em favor de interesses apenas utilitaristas
e parcamente solidários. Não se teve em conta a subjetividade, a autonomia
e a alteridade dos seres e da própria natureza.
Importa, entretanto, reconhecer que o projeto da tecnociência
trouxe incontáveis comodidades para a existência humana. Levou-nos para o
espaço exterior, criando a chance de sobrevivência da espécie Homo
sapiens/demens em caso de eventual catástrofe antropológica.
Universalizou formas de melhoria de vida (na saúde, na habitação,
no transporte, na comunicação, etc.), como jamais antes na história humana.
Desempenhou, portanto, uma função libertadora inestimável. Hoje,
entretanto, a continuação desse tipo de apropriação utilitarista e
anti-ecológica poderá alcançar limites intransponíveis e daí
desastrosos. Atualmente, para conservar o patrimônio natural e cultural
acumulados, devemos mudar. Se não mudarmos de paradigma civilizatório,
se não reinventarmos relações mais benevolentes e sinergéticas com a
natureza e de maior colaboração entre os vários povos, culturas e religiões,
dificilmente conservaremos a sustentabilidade necessária para realizar
os projetos humanos, abertos para o futuro e para o infinito.
Para resolver esses três problemas globais, dever-se-ia, na verdade,
fazer uma revolução também global. Entretanto, assim nos parece, o tempo
das revoluções clássicas, havidas e conhecidas, pertence a outro tipo de
história, caracterizada pelas culturas regionais e pelos estados-nações.
Para tal revolução global, far-se-ia necessária uma ideologia
revolucionária global, com seus portadores sociais globais que tivessem
tal articulação, coesão e tanto poder que fossem capazes de se impor a
todos. Ora, tal situação não é dada nem possivelmente
dar-se-á aproximamente. E os problemas gritam por um encaminhamento,
pois sem ele poderemos ir de encontro ao pior. A saída que muitos
analistas propõem e que nós assumimos - é a razão de nosso texto, é
encontrar uma nova base de mudança necessária. Essa base deveria
apoiar-se em algo que fosse realmente comum e global, de fácil compreensão
e realmente viável. Partimos da hipótese de que essa base deve ser ética,
de uma ética mínima, a partir da qual se abririam possibilidades de
solução e de salvação da Terra, da humanidade e dos desempregados estruturais.

Nessa linha dever-se-á, pois, fazer um pacto ético, fundado não tanto na
razão ilustrada, mas no páthos, vale dizer, na sensibilidade humanitária
e inteligência emocional expressas pelo cuidado, pela responsabilidade
social e ecológica, pela solidariedade generacionista e pela compaixão,
atitudes estas capazes de comover as pessoas e movê-las para uma nova
prática histórico-social libertadora. Urge uma revolução ética
mundial.

Tal revolução ética deve ser concretizada dentro da nova situação
em que se encontram a Terra e a humanidade: o processo de globalização
que configura um novo patamar de realização da história e do próprio
planeta. Nesse quadro, deve emergir a nova sensibilidade e o novo
éthos, uma revolução possível nos tempos da globalização.

Por éthos, entendemos:

O conjunto das inspirações, dos valores e dos princípios que
orientarão as relações humanas para com a natureza, para com a
sociedade, para com as alteridades, para consigo mesmo e para com o
sentido transcendente da existência: Deus.
Como veremos ao longo de nossas reflexões, esse éthos não nasce
límpido da vontade, como Atena nasceu toda armada da cabeça de Júpiter.
Mas toda ética nasce de uma nova ótica. E toda nova ótica irrompe a
partir de um mergulho profundo na experiência do Ser, de uma nova percepção
do todo ligado, religado em suas partes e conectado com a Fonte originária
donde promanam todos os entes.

BOFF, Leonardo. Éthos mundial. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2000.